Metaverso: desigualdades e carência de legislações

De diVerso: laboratório de estudos sobre o metaverso
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Autoria inicial: Isabela Damilano Vieira e Juliana Maria Oliveira dos Santos

As lacunas entre o Norte Global e o Sul Global são mais evidentes quando o assunto é desenvolvimento tecnológico. A construção do Metaversoestá sendo feita sob as perspectivas infraestruturais, legais e comerciais do Norte Global e traz uma série de implicações ao não considerar as diferenças socioculturais e econômicas globais. As desigualdades no direito ao acesso com hardwares caros e/ou falta de literacia digital deixa as regiões do Sul Global bem atrás na corrida da economia digital. Além disso, a baixa discussão e envolvimento das partes faz com que o metaverso herde problemas de tecnologias antecessoras que ainda carecem de legislações específicas.

Histórico

As lacunas entre o Norte Global e o Sul Global sempre existiram e são ainda mais evidentes quando o assunto é desenvolvimento tecnológico. Em geral, os governos financiam a pesquisa e, pagar altos preços para adquirir lançamentos parece não ser um problema para a maioria da população dessas regiões. Inclusive, esse movimento foi vivenciado recentemente durante a pandemia de Covid-19 e a prioridade dada pela indústria farmacêutica a esses países[1].

Um estudo recente[2] aponta novas evidências em relação à geografia econômica das plataformas digitais, apontando uma concentração na corrida global da economia digital em determinadas regiões, países e cidades, e uma presença tímida de empresas de plataforma especialmente no Sul Global.

Recentemente muito se tem falado sobre os ambientes imersivos e suas benesses, a chamada revolução do metaverso[3] em diversas áreas. O metaverso já está sendo construído, especialmente por big techs como Meta e Microsoft, corroborando com o que está apontado no relatório[4]: “as bases do metaverso estão sendo construídas a partir do Norte Global sob perspectivas infraestruturais, legais e comerciais”. Isso significa que se não houver uma discussão neste “momento inicial” de construção do metaverso, corremos o risco de replicar erros passados no desenvolvimento de novas tecnologias digitais ao não considerar as diferenças socioculturais e econômicas globais.

É nítida a assimetria entre o Norte e Sul Global se considerarmos a infraestrutura de produção e acesso a novas tecnologias, as estratégias e investimentos em pesquisa científica, a literacia digital de usuários, a legislação que blinda as produtoras em determinados territórios, entre outros aspectos. Todo esse cenário colabora para deixar o Sul Global em desvantagem com a ascensão do metaverso e gerar mais oportunidades para os desenvolvedores dessas tecnologias frente às necessidades impostas pelo mundo contemporâneo.

Desigualdades no direito ao acesso

Dados da pesquisa TIC Domicílios 2021[5] apontam disparidades no acesso à Internet nos domicílios brasileiros, uma das regiões do chamado Sul Global. Em relação a presença de computadores nos domicílios, a proporção foi menor em domicílios das áreas rurais (20%), das regiões Norte (29%) e Nordeste (27%) e entre domicílios das classes DE (10%). Ainda que hoje o maior acesso à internet, no Brasil, seja por meio de dispositivos móveis[6], algumas aplicações requerem o uso de computadores, seja pela facilidade de utilização da ferramenta ou para um uso integral da aplicação, visto que em dispositivos móveis algumas funcionalidades são suprimidas. Deste ponto de vista, algumas pessoas acabam sendo excluídas nesse processo de avanço tecnológico. A pandemia de Covid-19 escancarou para o mundo esse cenário de desigualdade, seja na infraestrutura tecnológica ou na literacia digital.

Hardware para o metaverso

Daí, ao se discutir o metaverso é importante pensar qual hardware é necessário para provê-lo, desenvolvê-lo e acessá-lo? Nesse ponto podemos considerar três tipos de hardware, a saber[7]:

  • hardware voltado para o consumidor: usados para permitir a interação de usuários com o ambiente imersivo, como fones de ouvido VR (realidade virtual), telefones celulares, sensores, luvas táteis, entre outros.
  • hardware corporativo: usados ​​para operar ou criar ambientes virtuais ou baseados em AR (realidade aumentada), por exemplo, câmeras industriais, sistemas de projeção e rastreamento e sensores de varredura.
  • hardware específico de computação: usados para permitir o desenvolvimento dos ambientes, como chips GPU (Graphics Processing Unit) e servidores, bem como hardware específico de rede, como cabeamento de fibra óptica ou chipsets sem fio.


A Meta e Microsoft têm investido alguns bilhões para prover um ambiente imersivo dos sonhos, mas a Intel, gigante de chips semicondutores, aponta que o metaverso demanda computação com capacidade mil vezes maior que a atual[8]. Ou seja, o metaverso pode requerer acesso a tecnologias que ainda nem foram criadas. Um smartphone Android ou iOS pode ser um ponto de partida para o usuário comum, mas a praticidade e processamento gráfico vão exigir um computador e, outros ambientes mais aprimorados vão exigir a compra de hardwares especialmente caros.

Falta de literacia digital

Outro aspecto a se mencionar em relação a desigualdades de acesso é a falta da literacia digital. A nova face do capitalismo, baseada na economia digital, torna essencial a compreensão de suas dinâmicas, o entendimento dos conceitos e linguagens e disponibilidade de tempo para aprender e poder intervir com qualidade neste novo ambiente[9]. Parte dessa compreensão pode ser fortalecida com a reavivação do movimento de software livre e fortalecimento dos espaços makers, de modo que soluções alternativas e baratas sejam criadas. Infelizmente, com a concentração do desenvolvimento do metaverso no Norte Global, especialmente com as big techs, só teremos o aumento do abismo digital e benefícios para quem já está à frente nessa “corrida”.

Novas interfaces, problemas antigos: a questão da regulamentação

Desde a revolução da internet, boa parte dos problemas do mundo real também são problemas do mundo virtual. Da mesma forma, novos ambientes virtuais herdam problemas de ambientes antecessores. Desta forma, temas como repressão, controle, vigilância e legislação também devem ser tratados quando o assunto é metaverso.

Crimes digitais no metaverso

Os crimes digitais já estão se espalhando no metaverso e a falta de conhecimento sobre o tema e  de legislação para o metaversso são barreiras ao combate das ilegalidades[10]. Por exemplo, o uso da plataforma Roblox para anunciar serviços piratas na Itália[11] e a venda de drogas virtuais[12] já são realidade.

Assim, além da necessidade de legislações para regulamentar o metaverso, é importante que os desenvolvedores dessas novas tecnologias pensem sobre as evidências necessárias que os ambientes imersivos devem prover para permitir a rastreabilidade e auxiliar na identificação dos crimes e aplicação de ações de repressão.

O metaverso proporciona a massificação de eventos sociais e algumas vulnerabilidades podem não estar relacionadas à tecnologia em si, mas com aspectos de engenharia social, por exemplo. Alguns potenciais crimes no metaverso para refletir incluem: assédio, propagação de discurso de ódio, invasões de hardwares, invasão de contas, malwares, clonagem de avatares, transações monetárias mal sucedidas, violações de direitos autorais, crimes contra crianças e adolescentes, dentre outros. Além da legislação para combater os crimes digitais, tais ambientes devem prover mecanismos para armazenamento de evidências e denúncias destes crimes.

Privacidade e uso dos dados no metaverso

Uma questão muito presente e atual é a segurança e privacidade de dados de usuários. A concepção dos ambientes imersivos precisa ser pautada em abordagens privacy by design de modo a antever potenciais problemas e valorizar os direitos e liberdades dos indivíduos durante todo o processo.

O poder de imersão dado pelo metaverso dá acesso a um conjunto de dados que permite predizer características comportamentais de indivíduos a partir de dados psicométricos[13]. Durante a navegação no metaverso, além de dados culturais e pessoais (sensíveis ou não), a plataforma tem disponível três sentidos humanos (visão, audição e tato). Estes dados dos sentidos cruzados com os comportamentos e reações a estímulos no ambiente podem informar muito sobre o comportamento do indivíduo. Assim, existe uma preocupação sobre qual uso será feito dos dados compartilhados no metaverso, se poderão por exemplo ser usados para justificar demissões por falta de atenção no ambiente corporativo, aumentar valores de planos de saúde por detectar que a pessoa é mais suscetível a determinada doença, entre outras possibilidades[14][15].

Desafios na Educação

Sem sombra de dúvidas a possibilidade de usufruir do lúdico proporcionado pelos ambientes metaverso ao processo educacional é positivo mas também permeado de diversos desafios[16]. Se pensarmos nos países do Sul Global, além dos desafios de infraestrutura tecnológica e conhecimentos digitais que evidenciam as desigualdades, ainda tem as questões associadas ao controle e acesso de dados de crianças e adolescentes.

Conforme aponta[16], as mudanças serão ainda mais impactantes para professores que deverão passar por horas de treinamento para melhor utilização dessa tecnologia; acompanhar as expressões dos avatares para saber se o aluno está entendendo ou não; controlar os recursos tecnológicos disponíveis e preocupar-se com os ajustes contratuais da relação trabalhista.

Verbetes relacionados

Referências

  1. Instituto Humanitas Unisinos. A pandemia ampliou a lacuna entre o Norte global e o Sul global. 16 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/615327-a-pandemia-ampliou-a-lacuna-entre-o-norte-global-e-o-sul-global
  2. IPEA. Estudo produz mapa-múndi da economia das plataformas digitais. 02 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/todas-as-publicacoes/publicacoes/319-estudo-produz-mapa-mundi-da-economia-das-plataformas-digitais
  3. Kassiane Vitória. Era digital: A revolução do Metaverso. 22 de novembro de 2022. Disponível em: https://unifatea.edu.br/2022/11/22/era-digital-a-revolucao-do-metaverso/
  4. Cristiano Therrien. O metaverso e seus horizontes democráticos. Março de 2023. Disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2023/03/relatorio-diVerso_NovosHorizontesDemocraticos_SL_2.pdf
  5. CETIC.br. Resumo Executivo - Pesquisa TIC Domicílios 2021. Novembro de 2022. Disponível em: 2021https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20221121125804/resumo_executivo_tic_domicilios_2021.pdf
  6. Ministério das Comunicações. Celular segue como aparelho mais utilizado para acesso à internet no Brasil. 16 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/mcom/pt-br/noticias/2022/setembro/celular-segue-como-aparelho-mais-utilizado-para-acesso-a-internet-no-brasil
  7. Thiago Toshio Ogusko. Hardware e o Metaverso. 23 de setembro de 2021. Disponível em: https://ogusko.medium.com/hardware-e-o-metaverso-f69a83a9754c
  8. Época Negócios. Para Intel, metaverso demanda computação com capacidade mil vezes maior que atual. 21 de dezembro de 2021. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2021/12/para-intel-metaverso-demanda-computacao-com-capacidade-mil-vezes-maior-que-atual.html
  9. The tricontinental. Big Techs e os desafios atuais para a luta de classes. 1º de novembro de 2021. Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/dossier-46-big-tech/
  10. João Pedro Malar. Crimes no metaverso? Conheça os principais tipos e as punições legais.18 de janeiro de 2023. Disponível em: https://exame.com/future-of-money/crimes-no-metaverso-conheca-os-principais-tipos-e-as-punicoes-legais/
  11. Ernesto Van der Sar. New Music Industry Takedown Service Targets NFT and ‘Metaverse’ Piracy. 11 de fevereiro de 2022. disponível em: https://torrentfreak.com/new-music-industry-takedown-service-targets-nft-and-metaverse-pirac-220211/
  12. Daniel dos Santos. “Os traficantes de drogas já estão no metaverso”. 8 de novembro de 2022. Disponível em: https://aiotbrasil.com.br/entrevista/os-traficantes-de-drogas-ja-estao-no-metaverso/
  13. Lucas Heiki. Como dados psicométricos podem influenciar nosso comportamento? 29 de janeiro de 2018. Disponível em: https://ibpad.com.br/comunicacao/como-dados-psicometricos-podem-influenciar-nosso-comportamento-em-edicao/
  14. Geralda Magella. Metaverso e ambiente digital: a cidadania em vigilância. 5 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://clicnavegantes.com.br/colunas/network-rights/metaverso-e-ambiente-digital-a-cidadania-em-vigilancia/
  15. Rangel Rodrigues. Dado é o novo petróleo. Mas e a privacidade no Metaverso? 24 de janeiro de 2022. Disponível em: https://www.securityreport.com.br/colunas-blogs/dado-e-o-novo-petroleo-mas-e-a-privacidade-no-metaverso/#.ZA0JMvdv_eQ
  16. 16,0 16,1 Charles Machado. Metaverso e desigualdades na educação. 15 de janeiro de 2022. Disponível em: https://futuropresente.net/metaverso-e-desigualdades-na-educacao/